Carlos Pereira: “Nada na minha vida é planeado”

Estivemos à conversa com uma das vozes mais frescas na comédia em Portugal.

"Quão arrogante seria eu por dizer que 2020 para mim foi ótimo?". Tínhamos acabado de nos sentar na Galeria NAVE, em Lisboa, quando o Carlos Pereira nos desarmou com esta reflexão. Afinal, no mesmo ano em que a terra parou, o jovem comediante conseguiu a proeza de saltar dos ecrãs dos smartphones para a televisão pública.

"Não é arrogante, é verdade", atiramos em jeito de piada. Afinal, o Carlos agora é presença habitual no horário nobre na televisão pública desde o verão, e até já há quem o reconheça na rua e grite sem vergonha "olha o gajo do 5!" - até com máscara.

Ainda que ao longo das próximas duas horas o Carlos vá insistindo que "tudo isto aconteceu por acaso", que "todos os anos parecem o primeiro ano a fazer comédia", ou que "na minha vida nada é pensado, nada é orquestrado", é difícil não sentir que esta ascensão até ao topo era apenas uma questão de tempo.

Hábil com as palavras, atento ao humor que espreita em cada frase, este é o mesmo aluno a quem uma professora de filosofia apelidou de Barack Obama e que é viciado em escrever sobre si e o mundo que o rodeia. "Quando eu era pequeno a minha mãe queria chamar-me Narciso e eu acho que isso explica muita coisa", diz entre risos.

"A tez para mim nunca foi uma questão"


A história do Carlos começou a escrever-se em São Tomé e Príncipe há 27 anos. Haveria de chegar a Portugal durante o 9.º ano, para encontrar um país onde nunca se sentiu "um gajo negro". "Eu senti-me sempre bem-vindo quer na comédia, quer em Portugal. Até costumo dizer que fui preparado para crescer nesta sociedade. Não é em vão que eu me chamo Carlos Manuel", diz de sorriso aberto.

Mas se durante a adolescência fazia cara feia às imposições da mãe – "havia muitas restrições com a roupa, porque a minha mãe dizia que camisolas com capuz eram para marginais" –, hoje reconhece-lhes o carinho essencial que o ajudou a integrar-se em Portugal. "Os pais fazem o melhor que podem para nos proteger, e se falharem, pelo menos tentaram".
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Ep.1 Carlos
Pereira

Enquanto se prepara para voltar a ser um "Barman", Carlos Pereira escreve e faz comédia no "5 Para a Meia Noite” e insiste que tudo na vida lhe acontece por acaso. À conversa com uma das vozes mais frescas na comédia em Portugal.
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Em 2020, "demos tudo nos primeiros quinze minutos e ao fim de meia hora estávamos todos rotos"


Num ano que Carlos compara aos últimos momentos de um jogo de futebol empatado a zero, chegar ao 5 para a Meia Noite foi "aquele contra-ataque que, no último minuto, dá golo". Mas será que isso significa que passar pela pandemia fez dele uma pessoa mais criativa ou produtiva? "Não, não vou cair no erro de romantizar a pandemia. Isso durou enquanto achávamos que isto ia passar em pouco tempo... Começámos todos a fazer cursos online, a aproveitar para ser melhor pessoa, terminar projetos que estavam na gaveta, etc. Mas a verdade é que ninguém tem pachorra... Demos tudo nos primeiros quinze minutos, e ao final de meia hora já estávamos todos rotos".

Mas isso não quer dizer que o Carlos tenha passado os últimos meses parado a pensar no que fazer a seguir. Apesar do sem fim de espetáculos cancelados e outros projetos que ficaram em suspenso, na pandemia acabaria por desenvolver "Barman", uma série inspirada nos dias em que Carlos, que não saía à noite, deu por si a trabalhar no Lux – "a única forma de lá entrar sem ser barrado". A série estreia em breve na plataforma RTP Play.

A grande novidade é que o guião foi desenvolvido entre amigos e não a solo. "Eu acho que sou viciado em escrever sobre mim. Mas eu a escrever uma série sobre mim? Ia ser uma espécie de culto!", brinca. "Eu gosto realmente de escrever com pessoas, então acabei por convidar amigos para escrever isto comigo durante o confinamento. Houve reuniões de zoom todos os dias, toda a gente a gritar... Foi a loucura, mas conseguimos!", remata Carlos. E foi a rotina e colaboração com amigos que acabou por mantê-lo são durante o período mais duro de isolamento, admite.

Trabalhar na "única área em que se riem do teu trabalho e tu gostas"


A verdade é que são poucas as situações marcantes na carreira de Carlos em que esteve realmente sozinho. Além da mãe que tanto o preparou para a idade adulta e dos amigos que ajudaram a dar corpo e forma a "Barman", há ainda "o amigo do secundário" que o inscreveu num open-mic de stand-up comedy em Alcântara. O resto é história, mesmo que o Carlos diga que não.

"Eu não escolhi ser comediante. Não me vejo a ser outra coisa, mas não escolhi ser comediante, calhou ser comediante. Fui meio empurrado por um amigo que disse 'vai' e eu fui. A primeira vez que sugeriram que subisse a um palco, só conseguia pensar 'Eu? Mas porquê eu? Eu não!", admite. Mas sete anos depois, já não tem dúvidas nem meias palavras: estar em cima do palco é das coisas que lhe dá mais alegria.

Se ainda as havia, por esta altura restam poucas dúvidas que Carlos é um performer de corpo inteiro. "Para mim continua a ser fascinante pensar em algo, dizer algo às pessoas e elas reagirem. Isso dá-me uma felicidade... Quando estou em palco, estou feliz!", explica antes de reforçar: "Esta é uma das poucas áreas em que escreves coisas e vais falar para pessoas que estão dispostas a ouvir. Como se costuma dizer, é a única área em que se riem do teu trabalho e tu estás confortável com isso. Isso é muito libertador, mais ninguém tem essa possibilidade".

"Em Portugal, a comédia é quase toda composta por betos"


"A magia de fazer este tipo de arte é o lado livre da coisa, o seres livre para criar o que tu queres e como tu queres. E para alguém como eu, que age por impulso, isso é muito importante", haveria de dizer várias vezes durante o nosso encontro. Mas ao mesmo tempo que começava a abraçar toda a liberdade que a escrita e a comédia lhe dão, Carlos também teve de aprender a lidar com o grande rótulo que é ser "O Único Humorista Negro Em Portugal".

"Não haver mais comediantes negros em Portugal dirá sempre mais da sociedade em que vivemos do que destes comediantes. Porque as pessoas querem, mas a sociedade não deixa”, reflete o humorista. "A sociedade está sempre a dizer-nos 'isto não é para ti, tu és outra coisa, tu tens que cantar, jogar à bola, mas a comédia não é para ti", conclui.

Palavras duras, mas que Carlos tem sabido contornar e desmontar ora em palco, ora nos sketches em que participa, ora nas entrevistas que vai dando. Ainda assim, o humorista hesita em reconhecer alguma forma de ativismo na sua atividade. "Há um ano dei uma entrevista a rejeitar isso, e agora estou precisamente na caixinha de que tentei fugir a sete pés. É de fazer tudo por impulso...", começa por dizer.

"Mas eu não quero ser ativista, nem há reformas para ativistas!", atira com uma gargalhada antes de reforçar que não quer "ser o herói de ninguém". "E também não sou o gajo que está numa missão para azucrinar a cabeça aos brancos, ou que vai levar os negros às costas – eu estou longe de ser essa pessoa!" Além disso, manifesta-se repetidamente contra os líderes em geral, e deixa mesmo um apelo: para as causas que nos importam, porque não "vamos todos"?

"Esta é a geração com mais consciência social" e vai resolver tudo num churrasco de domingo à tarde


Estamos na reta final do nosso encontro e é palpável a realização pessoal de Carlos enquanto comediante. Ainda assim, perguntamos se não há mais nada que gostasse de fazer. "Quando era mais pequeno queria ser bibliotecário", diz antes de contrapor que "não se pode fazer barulho na biblioteca e eu não queria nada ser o gajo que manda as pessoas calar".

Mas será esta carreira uma inevitabilidade que nem 100 mil euros mágicos podiam ter mudado? "Ia acabar por gastar esse dinheiro todo em hotéis", começa por dizer em tom de brincadeira. Mas depois de uma pausa, confessa que "se tivesse a noção que tenho agora, tinha feito as coisas de outra forma. Provavelmente investia um bocado na comédia e ajudava a minha mãe".

É por entre risos e uma breve antevisão do futuro – com a estreia de "Barman" apontada para este ano e a continuação do "5 Para a Meia Noite" – que Carlos deixa escapar uma última reflexão que só podia ser feita por ele: "eu acho mesmo que os problemas do mundo se vão resolver num domingo à tarde, quando estivermos todos num grande churrasco e a falar – mas levem seitan para os vegetarianos!".

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